Duplas Superfícies: criação coletiva apresenta experimentos sobre o virtual e o espaço de casa

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Lucila Vilela e Vera Torres ocupam a coluna de artes visuais Ttéia, de Kamilla Nunes, e apresentam a criação coletiva conduzida por Diana Gilardenghi e as experiências visuais produzidas por Hedra Rockenbach. Os vídeos são resultado de experimentações no ambiente de casa. Boa leitura!

Uma das maiores dificuldades da condição de isolamento, requerida no início de 2020 como medida de contenção da pandemia, foi o segmento das atividades presenciais. As artes cênicas, performances, apresentações teatrais, shows, concertos, aulas e toda uma série de ações precisaram em pouco tempo encontrar um formato que pudesse dar continuidade, pelo menos temporariamente, a essas atividades. Aos poucos, cada setor foi encontrando seu espaço. E foi por meio das lives ou de plataformas de encontros virtuais, que um corpo virtual foi se delineando e encontrando novas maneiras de interação.

Estávamos em casa e lidávamos com a avalanche de informações que agitavam os dias instáveis. Nossas aulas de dança contemporânea estavam em pausa. Uma pausa necessária. A suspensão inicial trouxe fôlego e consciência para entender a necessidade de um abrigo e os cuidados com o corpo. Diana Gilardenghi, nossa professora, mestra da dança, artista e bailarina, traz em suas aulas uma elaborada pesquisa das artes do corpo e da dança. E sentimos falta.

No meio virtual, em pouco tempo, foram aparecendo muitos vídeos de dança, música e ações que exploravam o espaço da casa. Com a nova situação, os ambientes domésticos foram sendo experimentados com muita criatividade e a necessidade da arte fez-se evidente. A casa na requerida quarentena acabou tornando-se protagonista de muitas ações, difundidas em formas de vídeo no ciberespaço.

Diana que, desde 2010, realiza uma pesquisa de criação dentro do projeto CASA, de artes visuais e performances, um projeto coletivo que justamente trata o olhar sobre a casa, percebeu que a nova condição criava outra situação. Antes de pensar em qualquer trabalho de criação, buscava-se a forma de dar sequência às aulas, para poder entender, respirar e trabalhar o corpo. E, respeitando o tempo de absorção, Diana começou a trabalhar com as turmas, primeiro com áudios e exercícios conduzidos pela voz e depois dentro das plataformas de encontros virtuais. 

Encontrar a presença dentro do ciberespaço e entender qual é esse espaço de trabalho foram os novos desafios. Já não havia mais a sala de aula, mas sim a sala de casa, e os corpos apareciam na tela convertidos em imagens. Com isso veio também o entendimento das mudanças que começam a caracterizar o século 21 e as possibilidades de interação e comunicação no meio digital. A condição de isolamento acelerou o processo de uso dessas novas ferramentas; e o trabalho com o corpo teve que se adaptar a essa nova condição.

— Não sabia como aconteceria, se funcionaria, se era o melhor a ser feito perante as demandas e incertezas de uma imprevisível realidade, mas sim reconheci a necessidade de um encontro, um novo possível, o mais parecido ao que tínhamos para que pudéssemos nos ver, comunicar, seguir juntos; e combinando que seria um teste demos a  partida. Com o impulso e a manifestação de desejo que veio do grupo e graças ao compromisso e dedicação entregues a cada encontro, funcionou — conta Diana.

Quando as aulas começaram na forma de encontros virtuais, estávamos em casa e esse fato não pôde ser ignorado. Diana então propôs um exercício de pesquisa a partir das superfícies que encontrávamos. A proposta consistia em apoiar com três partes do corpo, que iam se acumulando em sequência e estabelecendo contato com algumas superfícies, deixando o corpo se moldar, surgir e transitar. O registro desses lugares levava a um tipo de movimentação que poderia ser variada em sua velocidade, peso, ritmo e direção. 

As superfícies da casa começaram a ser ocupadas de outras formas, diferentes das habituais; e um novo processo começou a se organizar. Marisa Solá, uma das participantes dessa pesquisa, percebeu:

— Aos poucos fomos descongelando, cada um na sua casa, espaço que se abriu para o encontro, para o ritual de aquecimento e de experimentação na cozinha, na sala, no quarto, na lavanderia e até no banheiro. Nos entregamos ao processo, remexemos nosso mal estar, percebemos o corpo e arriscamos brincar.

Em uma segunda etapa, percebemos a questão da imagem. A pesquisa, que estava se dando no corpo, era percebida pelo grupo também em seu aspecto visual: a composição, a iluminação e as cores. Considerando essa condição do espaço virtual, começamos a explorar a imagem em dois planos: plano detalhe e plano aberto. Uma superfície próxima à câmera, outra mais aberta. Seguindo a proposta de movimento, obtivemos duas qualidades de imagem, uma com os corpos próximos, fragmentados, e outra com os corpos inteiros, no espaço.

Assim o trabalho de corpo se somou à pesquisa de imagem e nesse momento do processo, iniciou-se uma colaboração com Hedra Rockenbach, artista multimídia que no momento estava investigando as possibilidades de efeitos e gravações nas plataformas de encontros virtuais. Ela nos mostrou um mundo novo de possibilidades e ferramentas até então desconhecidas, foi ali que conseguimos visualizar, nos adentrar e redefinir a proposta. A escolha pelo trabalho em duplas estabeleceu diálogos inusitados que contaram com o acaso e com o olhar sensível e atento de Hedra. A duplicidade e sobreposição de imagens permitiu uma interação virtual dos corpos, objetos, cômodos que se fundiram criando novos ambientes, casas.

Duplas Superfícies é o resultado desse processo. O grupo reúne artistas visuais e da dança, da área de psicologia e da antropologia, dentre outras, cujo interesse nas questões do corpo/dança permite uma diversidade e heterogeneidade nos modos de transitar por superfícies e visualidades. A criação coletiva conduzida por Diana Gilardenghi e as experiências visuais produzidas por Hedra Rockenbach geraram vídeos que agora transitam independentes pelo espaço virtual.

O olhar para a casa mudou e o contato com o espaço foi atravessado por uma nova consciência. A percepção do momento e as relações entre presença e ausência, realidade e virtualidade, corpo e imagem, transformaram-se no decorrer dos dias; no acalanto das tardes conduzidas por Diana. 

Duplas Superfícies

Proposição e Direção: Diana Gilardenghi
Vídeo/Gravação ao vivo e finalização: Hedra Rockenbach 
Com: Lucy Montardo, Lucila Vilela, Vera Torres, Sandra Meyer, Marisa Solá, Paloma Bianchi, Iam Campigotto, Thaís Roloff, Giorgio Gislon, Lilian Yamaguchi, Josefina Hernandez Daels.

Kamilla Nunes é artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro Espaços autônomos de arte contemporânea (2013). Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico.

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