“Imagens loucas, com tinturas de real”: a multidão e a solidão na obra de Ruchita

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Crédito: Ruchita, reprodução

Pouco antes do desmoronamento do Brasil pela contaminação do Covid-19, abrimos a exposição individual Imagens loucas, com tinturas de real, da artista Ruchita, no Memorial Meyer Filho. A visitação iria até o dia 5 de abril se não estivéssemos cumprindo as regras de isolamento social. Por isso decidi inaugurar minha coluna na Revista Gulliver com um dos vídeos que fizeram parte dessa exposição, chamado Powder Rape, de 2017. Entendo esse post como uma continuidade da exposição, como uma maneira de fazer reverberar a construção dos processos de criação e produção que compartilhamos entre nós, e agora com todos vocês.

Imagens loucas, com tinturas de real
Ruchita

Feitas a golpes de pequenas introspecções, esta exposição se dedica a explorar nossos íntimos e as inúmeras amarras invisíveis resultantes de condicionamentos sociais. Apresentadas nos suportes de vídeo e fotografia, as obras desvelam nossas próprias prisões, ao mesmo tempo em que instauram uma relação de forças, um campo aberto de vetores que se movem em todos os sentidos. Talvez estejamos falando de obras “sem rabo nem cabeça”, para usar uma expressão de Didi-Huberman, obras que não estão fechadas no limite de um começo (a cabeça) e de um fim (o rabo). Desse modo, elas também não se submetem a hierarquias, posto que são inesgotáveis.

O procedimento de criação de Ruchita passa pela escuta, pela captura de ruídos dentro dessa massa de barulhos na qual estamos imersas, ruídos que são, em suas obras, transformados em texturas, em sobreposições, em empilhamentos, em coberturas, em rumores. Nesse sentido, rumor é o ruído de coisas que se deslocam, o murmúrio de coisas ou situações móveis.

Powder Rape (2017), vídeoinstalação, 2’34”, loop, dimensões variáveis

As obras de Ruchita ocupam um lugar paradoxal em nossos espaços de visibilidade porque elas sussurram, elas falam em segredo. Um paradoxo que pode ser visto, ou pensado, também como dissenso, como algo que é e está entre uma coisa e outra, entre o fluido e o estático, o rígido e o flexível, a natureza e o artificial, o visível e o invisível, a multidão e a solidão, a violência e a complacência.

Por fim Imagens loucas, com tinturas de real – termo emprestado de Roland Barthes – contempla um conjunto de imagens que evidenciam e intensificam o real, elas afirmam o passado dos objetos, das coisas, dos sentimentos, das amarras, das angústias e dos respiros que já não estão apenas ali, mas aqui. A imagem louca revela uma forma de alucinação temperada: ao mesmo tempo em que a artista performa gestos e sentimentos notáveis, ela decreta notável o que apresenta em forma de vídeos, fotografias e performances. Precisamos ir além desse campo de visibilidade, justamente porque o que temos aqui são obras que se dedicam a apresentar outros mundos, outras pessoas e outras relações que escapam à própria arte.

Kamilla Nunes
Curadoria

Kamilla Nunes é artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro Espaços autônomos de arte contemporânea (2013). Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico.

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