Corpo, arte e descolonização em diálogo com loveletter.exe

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Por Debora Pazetto

Quais são, hoje, as normas, conceitos, práticas, tecnologias e estéticas que marcam, organizam hierarquicamente e exploram – em uma palavra: colonizam – os corpos? Como esses dispositivos delimitam as experiências e subjetividades? A serviço de quais interesses eles são impostos? Pode a arte funcionar como estratégia de subversão, desvio ou transgressão dos dispositivos de colonização dos corpos? 

Primeiramente, quero ressaltar que compreendo todos esses sistemas de opressão sociopolítica sob o denominador comum “colonização”, que engloba, portanto, não apenas as opressões relacionadas com regiões, países e territórios, mas também as relacionadas com raças, etnias, classes, gêneros e sexualidades. Em segundo lugar, que parto de uma perspectiva materialista. Em síntese, entendo que tudo é corpo, ou seja, que intelecto, mente, informação, significado, virtualidade etc, são aspectos ou expressões do corpo e da materialidade do mundo. Como dizem os Mamaindê: alma é aquela parte do corpo que a gente não vê. Em terceiro lugar, quero ressaltar que parto do pressuposto de que as artes – na medida em que modificam ou criam afetos, comportamentos, significados, modelos de existência e coexistência – podem ser modos de transtornar sistemas conservadores, exploradores e autoritários. Assim, se o corpo é território de colonizações, também pode ser território de descolonizações, na medida em que é acionado artisticamente como potência política subversiva. 

Pesquisar a questão do corpo e suas potências estético-políticas na contemporaneidade demanda seriamente uma teoria descolonial da arte brasileira. Isso porque, enquanto nos EUA e na Europa a desmaterialização da arte, isto é, a transformação da ideia ou do conceito em experiência artística, costuma ser apontada como alicerce da arte contemporânea, no Brasil, na mesma época, as principais propostas que fundam a contemporaneidade nas artes operam por meio da transformação do corpo em experiência ou ação artística. Não o conceito, mas o corpo, seja o corpo do artista, do participante (não mais espectador) ou o corpo social. Como todos sabem, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape projetam-se publicamente, nacional e internacionalmente, como os principais fundadores da arte contemporânea brasileira.

Aliás, essa origem corporal da contemporaneidade artística brasileira pode ser buscada antes, se considerarmos as experiências de Flávio de Carvalho – um performer antes da performance, um artista que, se fosse europeu, seria usado como exemplo para questionar várias narrativas cronológicas da história da arte – na década de trinta. O grande problema é que, como a maioria da produção teórica sobre arte no Brasil parte de referenciais europeus ou estadunidenses, o engajamento corporal e político presente nessas experiências fundadoras – que continua reverberando fortemente na produção atual – costuma ser subvalorizado, pouco discutido ou discutido nos termos de uma experiência de realidade muito distante da latino-americana ou latino-amefricana, para usar a expressão de Lélia Gonzalez. 

Lovelettere.exe, Fakebook, 2017.

Pois bem, sabemos que o atual capitalismo financeiro tecnológico totalitário só pode se sustentar com a produção massificada de corpos obedientes, colonizáveis. Desde a década de 80, testemunhamos um imenso aparelhamento tecnológico dos corpos, que passaram a ser condicionados a diversas domesticações e impotências, e controlados por aparatos repressivos hightech que vão do entretenimento massificado à vigilância e ao extermínio. Contudo, quando uma relação de subordinação se materializa, ela cria uma série de complexas ações e reações, violências e conivências, assim como algum espaço (árduo) para estratégias de resistência. Entre essas estratégias, acredito ser possível incluir algumas propostas artísticas, sobretudo aquelas que, de diferentes maneiras, engajam os corpos em práticas descoloniais. Ou seja, em práticas que fazem vacilar as identidades corporais construídas e ao mesmo tempo naturalizadas por culturas colonizadoras como o capitalismo transnacional militarizado, o patriarcado, a supremacia branca, a supremacia do norte global e a cisheteronormatividade. 

Nessa direção, gostaria de ressaltar o trabalho da artista-avatar brasileira loveletter.exe. Originalmente, este é o nome de um vírus surgido no começo do milênio, o qual se espalhou por todo o mundo e causou um prejuízo de bilhões de dólares na rede mundial de computadores. A artista loveletter.exe se apresenta como uma versão biodigital desse vírus, atuando nas redes sociais para buscar, em suas palavras, “novos modos de ser, sentir, criar e compartilhar a vida conectada em rede”. Além de séries de imagens com a estética do glitch, a artista desenvolve séries de performances em rede que envolvem etnografias das redes, apropriação arbitrária da imagem pública de usuários da rede e desfiguração de rostos, tencionando as percepções de público e privado. O que ela faz, no fim das contas, é uma engenharia reversa sobre as formas de equívocos em identificação facial, utilizando modelos falsos de corpo, manequins, máscaras e maquiagens, com o objetivo de induzir os algoritmos ao erro. Para além das técnicas corporais, pictóricas e escultóricas utilizadas, a maior potência desse trabalho é apresentar como performance artística a própria subversão dos mecanismos de reconhecimento facial (esse mecanismo que recebe trinta bilhões de investimento ao ano e que é o símbolo mais explícito do capitalismo-tecnológico-militar-colonial-totalitário).

Para usar os conceitos do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, os trabalhos de loveletter.exe revelam que a arte é capaz de assimilar técnicas pós-industriais sem, todavia, subordinar-se à função dominadora que elas exercem econômica e politicamente. Ou seja, a arte pode usar tecnologias à maneira hacker: enquanto desvio de função ou programação.

Loveletter.exe, Facial Recognition: engenharia reversa, 2017.
Loveletter.exe, Facial Recognition: triangulações, 2017.

Fakebook é uma etnografia de rede que procura explorar erros nos sistemas de reconhecimento facial do Facebook. Se esses sistemas são cada vez mais ubíquos, é especificamente nas redes sociais que eles criam um regime de visibilidade associado às informações mais íntimas da vida comum produzida em rede. Essa associação busca definir com precisão os dados que definirão os perfis de consumo capitalizados pelas redes sociais.

Esse estudo busca apontar para novas formas de utilização das redes sociais, sem necessariamente haver identificação com um usuário específico ou com uma identidade “real”, que são a base da política de acesso ao mundo digital. A partir da rede, essa etnografia procura detectar e produzir a poética de personagens, ficções de metadados, publicações e outras realidades possíveis, explorando e criando metaficções a partir do que se definiu como pós-verdade (Loveller.exe).

Rastreabilidade biodigital / rostos atrás de máscaras

Agora, três anos após a produção de Fakebook, vivemos um estado de exceção. Lutamos contra uma epidemia global. Governos do mundo inteiro convocam seus cidadãos ao confinamento, ao teletrabalho e ao teleconsumo. Escolas e universidades suspendem ou virtualizam suas atividades. Fronteiras, estradas e aeroportos são fechados. Sistemas de saúde e funerários, públicos e privados, entram em colapso. Trabalhadores, em suas casas, param para refletir sobre o sentido da existência. Cadáveres são enfileirados em sacos plásticos e enterrados em valas comuns. A rastreabilidade biodigital adquire novos argumentos e técnicas. Políticas neoliberais se tornam mais agressivas, mas também mais questionáveis. Corpos passam a ser percebidos como vetores de contágio.

Loveletter.exe. Rostidade zero: estudo para confecção de -1rosto

O mundo é outro. Ao mesmo tempo, continua sendo o mesmo. O vírus apenas coloca um holofote sobre o apocalipse ecológico e as opressões de classe, raça, gênero e território que sempre estiveram por aí. No Brasil, o novo contexto desastroso de pandemia e confinamento se sobrepõe ao velho contexto de desastre ambiental, político e econômico que vem sendo promovido pelo governo Bolsonaro/Guedes. Em certo sentido, a realidade presente é uma probabilidade passada. Eu gostaria de evitar o equívoco – que tenho visto nos textos de tantos filósofos famosos – de ser precipitadamente otimista, postulando a epidemia como resgate de uma consciência solidária e comunitarista que marcaria o fim do neoliberalismo, sem atentar para a materialidade da conjuntura política. Ou então precipitadamente pessimista, atentando apenas para as medidas de austeridade, proteção de bancos, nacionalismo fascista e vigilância biodigital que estão de fato sendo ampliadas, sem vislumbrar as possíveis frestas de resistência. Daí a importância de compreender a arte como possibilidade de subverter estrategicamente os instrumentos, linguagens, aparelhos e programas que colonizam nossos corpos. 

Loveletter.exe, Facial Recognition: engenharia reversa, 2017.

O trabalho de loveletter.exe não poderia ser mais atual e urgente: num mundo em que todos os rostos se escondem atrás de máscaras de tecido e máscaras de Instagram, uma artista-vírus transgride os mecanismos de reconhecimento facial. Na China, há 200 milhões de câmeras de vigilância providas de reconhecimento facial. Agora, como alerta Byung-Chul Han, o espesso sistema de crédito social e biovigilância digital, que se mostrou tão eficaz no controle da Covid-19 em alguns países asiáticos, tende a se intensificar e se alastrar pelo mundo inteiro. Como escapar? Como descolonizar nossos corpos teletrabalhadores, hiperconectados, obedientes e biovigiados? Paul Preciado nos convoca a desligar os celulares, desconectar a Internet e fazer um grande blackout diante dos satélites que nos vigiam. Sabemos que isso não vai acontecer. Sabemos também que a resistência à dominação tecnológica não poderá ser feita pela negação ingênua da tecnologia, mas por sua assimilação subversiva. Se já somos ciborgues – corpos-avatares acoplados em dispositivos rastreáveis –, que possamos ser descoloniais. Talvez por meio do engajamento corporal em propostas artísticas subversivas. Mas também, não custa sonhar, por meio de alguma emancipação técnica: criptografia, software livre, provedores descentralizados, ferramentas de comunicação não rastreáveis.

Loveletter.exe, Rostidade Zero: estudo para a confecção de -1rosto, 2016

Não apenas nosso país, mas nossos corpos e imaginações foram/são sistematicamente colonizados. O projeto colonial se consumará quando perdermos completamente a capacidade de imaginar que as coisas podem ser diferentes, de desejar outras formas de existência e coexistência, de construir projetos viáveis de sociedade, de acreditar na potência da ação política coletiva. A arte e a filosofia podem parecer impotentes diante das atuais técnicas necropolíticas do capitalismo. No entanto, quando resistem à captura pelos esquemas mercadológicos ou produtivistas, elas são fundamentais para descolonizar nossos corpos e desejos. E essa descolonização é fundamental para criarmos uma aliança de lutas que combata transversalmente as várias formas de opressão – ambiental, tecnológica, epistemológica, estética, de raça, classe, sexo, deficiência, geração, território, religião e espécie – e possa desencadear alguma alternativa real. É tempo de resgatar a longa tradição latino-americana de arte de guerrilha. É tempo de radicalizar na arte e no pensamento: que não seja mais possível continuar seguindo a rotina obedientemente enquanto o caos se aprofunda. 

Loveletter.exe, Rostidade Zero: estudo para a confecção de -1rosto, 2016.

Debora Pazetto é professora de história e teoria da arte na Udesc, no curso de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. É graduada em Artes Visuais e em Filosofia, tem mestrado e doutorado em Filosofia da Arte.

Referências

FLUSSER, Vilém. Pós-História, vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Annablume, 2011.
HAN, Byung-Chul, “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”, El País, 22 de Março de 2020. 
PRECIADO, Paul Beatriz. “Aprendiendo del vírus”, El País, 28 de Março de 2020. 
Mais informações sobre a artista loveletter.exe podem ser encontradas no site da 3a Bienal de Arte Digital.

Kamilla Nunes é artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro Espaços autônomos de arte contemporânea (2013). Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico.

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