O que não pode ser remontado, precisa ser imaginado: um ensaio sobre a obra de Carlos Nigro

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Crédito: Carlos Nigro

As linhas,  os planos, os contrastes, as texturas e as diferenças na repetição são alguns dos elementos formais que saltam das fotografias de Carlos Nigro e ganham impulso a partir de nossas afecções e percepções. São elementos que distorcem nossas visões sobre o mundo, pois fixam, numa só imagem, o micro e o macrocosmos. Sua cosmovisão é composta por derivas no espaço urbano, que tem como resultado a captação de instantes, de breves momentos em que uma espuma escorre pela calçada, um vidro é embaçado, uma composição geométrica é reconhecida sobre um muro ou um pedaço de papel amassado é atirado no meio da rua. Marcel Duchamp chamava esses pequenos momentos de inframince, um gesto cotidiano sensível que se encontra no entre, um momento ínfimo no âmbito do ordinário urbano ou semiurbano. Carlos Nigro parece nos dizer que a arte, neste caso a arte da fotografia, é um estado de encontro e de pulsão que lança sobre a escuridão um instante de luz, um lampejo capaz de revelar o que há de mais obscuro dentro de nós, e ao nosso redor.

Assim como os fotógrafos surrealistas, que flertavam com a turbulência mundana e os acidentes, os acasos e as fatias de vida sem pose [1], para usar as palavras de Susan Sontag, Nigro realça os espaços e coisas sujas e sórdidas da cidade, a realidade marginal que existe por trás de uma sociedade que se caracteriza pelo consumo desenfreado, pela obsolescência e pela efemeridade. Ainda assim, seu olhar não julga, não é moralista, não é documental, ele apenas registra, através de uma estética que beira a da abstração, um mundo em vias de desaparecer. E, ao fazê-lo, Nigro também o inventa.

Ao observar com atenção suas fotografias, percebermos uma predileção pelos detalhes, que adquirem um efeito abstrato graças ao enquadramento e à proximidade da câmera do objeto, coisa ou lugar. Por isso os referidos elementos gráficos saltam aos nossos olhos, posto que se repetem, muitas vezes, à exaustão, invadindo as bordas da fotografia e vazando novamente pro mundo. E é assim que construímos uma história ou, no caso de Carlos Nigro, uma linguagem: a partir de nossos próprios detritos. A beleza de um espaço abandonado, de um objeto solitário, de uma pegada impressa no asfalto ou ainda de uma rajada de luz que se dispersa através de uma vidraça quebrada só pode ser percebida pela nossa capacidade de lidar com uma realidade infinitamente brutal, pois o que não pode ser remontado, precisa ser imaginado, reinventado, e este é mais um modo de fazer política, de resistir e de recomeçar.

Em entrevista ao curador Frederico Morais, Cildo Meireles declara que o artista, como o garimpeiro, vive de procurar aquilo que não perdeu. Uma premissa que nos ajuda, de alguma maneira, a encarar as fotografias de Carlos Nigro desde uma perspectiva da deriva situacionista, uma vez que Nigro parece fazer da cidade seu garimpo, ao criar ou transmitir realidades psicogeográficas, ou seja, há nas imagens que ele produz uma manifestação da ação direta do meio geográfico sobre a afetividade [2]. Do ponto de vista da geografia, essa é também uma relação topofílica, neste caso um elo afetivo que existe entre o fotógrafo e o ambiente físico.

Os processos que envolvem essa relação são percebidos como configurações que promovem tanto a convicção do lugar como confluência das experiências cotidianas, como da noção de lugar-sem-lugaridade. Significa dizer que lugar também é ausência, desequilíbrio e embate. Tal como na vida e na arte, o lugar é valorizado pela sua concretude, ao mesmo tempo que pode ser conduzido de um lado para o outro. Não é fixo, não é estável, é um local de conflito por onde a vida e a arte se fazem visíveis.

Nem um gênero, nem um conceito, lugar é a conectividade com a qual experienciamos o mundo. E o mundo somente é mundo nos lugares. Sem pressupor dualismos entre realidade subjetiva e objetiva, lugar aqui também é fábula, ficção e fantasia. Por meio de remontagens do tempo e do espaço, Carlos Nigro recria continuamente a noção de lugar e de pertencimento, ele possui o que Walter Benjamin chamou de “caráter destrutivo”, um termo designado pra pessoas que não veem nada de duradouro, precisamente porque enxergam caminhos por toda parte.

Talvez seja essa uma possível chave de entrada pra suas fotografias, uma vez que o caráter destrutivo converte o que existe em ruínas não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas [3]. De alguma forma suas fotografias parecem dizer: É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio [4]. Sob a pele das fotografias de Nigro existe uma visão de mundo cuja estética está pautada na melancolia, na transitoriedade e na imperfeição, nas flores que, ainda que “feias”, revoltam-se e rompem o asfalto, o medo e a escuridão.

Quem é Carlos Nigro

Carlos Nigro possui graduação em Arquitetura e Urbanismo, Especialização (1994) e Mestrado em Gestão Urbana. Possui também Especialização em Dinâmica de Sistemas, pela Càtedra UNESCO enSostenibilitatda UniversitatPolitècnica de Catalunya (2009). Formação em Esquizoanálise (Escola Nômade de Filosofia). Experiência em Gestão Universitária e na área de Arquitetura e Urbanismo (projetos integrados), com ênfase em Gestão Urbana. Como gestor universitário, foi coordenador-adjunto do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUCPR e também Decano da Escola de Arquitetura e Design da PUCPR. Autor do livro (In) Sustentabilidade Urbana, Editora InterSaberes. Foi membro do Conselho Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil, e da sua Direção Nacional, e foi Conselheiro do CAU/PR. Mentor do Projeto HETEROPHOTOPIA e do Movimento ARKHITETHOS. Foi também Membro do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Curitiba. Pela Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio e Indústria do Paraná recebeu o Prêmio PersonalitàAffari 2016, na categoria mérito pedagógico e eleito membro do seu Conselho Fiscal, para a gestão do triênio 2019-2022. Atualmente tem se dedicado a projetos culturais e a fotografia, aplicados ao urbanismo, bem como a produção de fotografias fine art.


[1]SONTAG, Susan. Sobre a fotografia – São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 68.

[2]JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da Deriva: escritossituacionistassobre a cidade / InternacionalSituacionista – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 65

[3]BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única: Obras escolhidas II, 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1995,  p. 236

[4]ANDRADE, Carlos Drummond de.A rosa do povo – 40º Ed. – Rio de Janeiro: Reccord, 2008, p. 28.

O poema A flor e a náusea, na íntegra:
Preso à minha classe e a algumas roupas, / vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias espreitam-me. / Devo seguir até o enjoo? / Posso, sem armas, revoltar-me? / Olhos sujos no relógio da torre: / Não, o tempo não chegou de completa justiça. / O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. / O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. / Em vão me tento explicar, os muros são surdos. / Sob a pele das palavras há cifras e códigos. / O sol consola os doentes e não os renova. / As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. / Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado. / Nenhuma carta escrita nem recebida. / Todos os homens voltam para casa. / Estão menos livres mas levam jornais / e soletram o mundo, sabendo que o perdem. / Crimes da terra, como perdoá-los? / Tomei parte em muitos, outros escondi. / Alguns achei belos, foram publicados. / Crimes suaves, que ajudam a viver. / Ração diária de erro, distribuída em casa. / Os ferozes padeiros do mal. / Os ferozes leiteiros do mal. / Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima. / Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. / Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto. / Façam completo silêncio, paralisem os negócios, / garanto que uma flor nasceu. / Sua cor não se percebe. / Suas pétalas não se abrem. / Seu nome não está nos livros. / É feia. Mas é realmente uma flor. / Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde / e lentamente passo a mão nessa forma insegura. / Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. / Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Kamilla Nunes é artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro Espaços autônomos de arte contemporânea (2013). Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico.

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