Utopias e distopias de uma pandemia: o custo social do coronavírus

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Foto: Victor He / Unsplash

Para o Brasil, país que se estabeleceu às custas do genocídio de 2,5 milhões de indígenas, onde a fome tem historicamente matado milhares de pessoas e o racismo vitimado corpos negros há séculos, mortes em larga escala não são novidade. O fato inédito trazido pela pandemia, porém, é a não discriminação dos atingidos. “Somos todos humanos e alvos do vírus, ele nos faz retornar a um sentido de espécie que estava adormecido diante das profundas desigualdades sociais”, diz a antropóloga Carmen Rial.

Nesta entrevista, a professora do Departamento de Antropologia da UFSC, Presidente do Conselho Mundial de Associações Antropológicas e Co-coordenadora da União Mundial de Antropologia fala das consequências sociais do covid-19: das manifestações de xenofobia aos mecanismos de controle tecnológicos e os movimentos de solidariedade. Será o começo de uma nova economia ou o início de uma distopia, com cidades controladas por drones?

Além da saúde, quais os custos sociais de uma pandemia? Qual a dimensão disso à luz da antropologia?

Uma pandemia é o que o antropólogo que fundou a Antropologia francesa, Marcel Mass (1872 – 1950), define como um fato social total. Tem consequências sociais, econômicas, psicológicas, biológicas, fisiológicas e políticas. Seria longo discorrer sobre cada uma dessas dimensões aqui. Sim, os custos são altíssimos. E se distribuem pelo planeta, dada a nossa condição de globalização.

No Brasil, uma crise como essa parece particularmente desconcertante, uma vez que não se tem um histórico de episódios que mataram tantas pessoas em pouco tempo nas últimas décadas (guerras, pestes, desastres ecológicos). De que forma você percebe o comportamento das pessoas no país?

É, o país está enfrentando algo que considera inédito. Mas que de fato não é. Se pensarmos no genocídio da população indígena veremos que o numero de mortes dificilmente será atingido nessa pandemia aqui. Estima-se que dos 2,5 milhões de índios encontrados pelos colonizadores em 1500 só sobreviveram 10% (Churchill, Ward. In Israel W. Charny. Encyclopedia of Genocide, ABC-CLIO, 2000:433.).

E o extermínio indígena se manteve até os anos 1950 – como registraram antropólogos como Lévi-Strauss (1908 – 2009) que em Tristes Trópicos conta como cobertores infectados pelo vírus da gripe eram jogados de aviões sobre terras indígenas que interessavam ao capital para serem despovoadas rapidamente.

A fome tem historicamente matado no país em larga escala. Ainda que nos anos do governo PT, graças a programas como o Bolsa Família, agora sofrendo criminosos cortes, o Brasil tenha saído do mapa da fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), voltamos a fazer parte dos países onde há muita fome. Em estudo publicado em 2018, as Nações Unidas apontam um número de 5,8 milhões de brasileiros estavam em estado de subnutrição entre 2015 a 2017. Quantos morreram por conta dessa condição ou de doenças a ela relacionada?

A epidemia da AIDS também matou milhões no mundo nos anos 1980, e muitos brasileiros. Agora, a pandemia do SARS-CoV-2 coloca uma situação inédita sim ao não discriminar os atingidos. Somos todos humanos e alvos do vírus, ele nos faz retornar a um sentido de espécie que estava adormecido diante das profundas desigualdades sociais. Ricos e pobres são potenciais transmissores e receptores do vírus, ricos e pobres podem contrair a Covid-19.

Também é inédito o fato de que essa é uma doença que ingressa no país pelas camadas mais abastadas da população. São os brasileiros que tinham viajado para o exterior e voltaram contaminados que importaram o SARS-CoV-2. Penso que é altamente simbólico o fato da primeira morte no Brasil ter sido de uma empregada doméstica que trabalhava na casa de uma mulher que voltara de seu turismo na Itália contaminada e não tomou as precauções pertinentes – sim, já se sabia do risco naquele momento.

Iguais? Evidentemente que não. A empregada irá para o SUS – que ainda existe como um sistema de medicina muito bom, pois não se destrói em dois anos um sistema que tem 20 anos, estabelecido pela Constituição de 1988. Mas o SUS que tem seus limites. Poucos leitos disponíveis nas UTIs hoje – cerca de apenas 10 mil. A patroa-turista-na-Itália provavelmente seria tratada na rede privada, onde as condições são evidentemente melhores, mas que também tem seus limites, de leitos nas UTIs e de aparelhos respiratórios. O dinheiro não traz imunidade ou cura. A ideia de que possam montar UTIs em casa é falsa.

Esse vírus que atingiu primeiro os bairros mais ricos deve em uma semana ou duas crescer nas periferias e favelas. E será então que veremos uma explosão de casos, pois as históricas deficiências de saneamento básico e de precarização o da moradia impulsionarão a disseminação do SARS-CoV-2 – e ainda mais se houver contradição nas diretrizes do governo, com irresponsáveis e criminosos chamamentos ao fim do isolamento físico.

Das questões que vieram à tona, identifiquei a xenofobia (“culpa do vírus chinês”) e uma espécie de terceirização da culpa (“histeria da imprensa”) como alarmantes. Por que você acha que temos essa tendência de sempre achar um culpado?

De fato, é mais fácil acusar o Outro distante, como a Antropologia tem mostrado. O “vírus chinês” é manifestação de uma xenofobia construída em relação ao Oriente que é muito antiga, como lemos no Edward Said (1935-2003). Ela toma diferentes formas. Eu mesma estudei uma dessas formas, a do rumor do “osso de rato encontrado em um prato num restaurante chinês” quando escrevi minha tese de doutorado. O que é novo (ou seja, desconhecido, que não controlamos) assusta. Seja no caso da comida exótica quando os primeiros restaurantes chineses se instalaram nas metrópoles ocidentais, ou como um vírus como o SARS-CoV-2.

A “gripe espanhola” de 1917 e que matou entre 10 a 50 milhões (alguns falam em 100 milhões) de pessoas surgiu em Kansas, nos Estados Unidos (Crosby, Albert Imperialismo Ecológico) mas é chamada de espanhola. Por que? Porque a Espanha, que não estava na Guerra e não tinha, portanto, censura na imprensa, divulgou números dramáticos da epidemia. Os espanhóis a chamaram de “gripe francesa”, porque se imaginava (e talvez fosse fato) que ela era muito pior na França. Melhor que o mal venha de longe.

O que é interessante nessa pandemia é vermos algumas relações entre países se inverterem. Achei muito significativo que os mexicanos (onde os números de contaminados ainda são baixos) tenham construído uma cerca, um “muro”, para impedir a entrada dos norte-americanos (que hoje já é o epicentro da pandemia, tendo ultrapassado a China). Ou dos países da América Latina terem fechado as fronteiras para os europeus.

Ao mesmo tempo, percebo inúmeros movimentos de solidariedade. Será uma bolha ou você acha que é realmente possível que desse processo todo se possa pensar em novas formas de convívio / distribuição de renda etc?

Sim, no meio da pandemia surgem utopias (e distopias). Podemos imaginar a utopia de um mundo global com menos tráfego aéreo, com menos poluição, com maior respeito à natureza e aos animais. O mais provável é que o SARS-CoV-2 tenha aparecido em um mercado de animais em Wuhan – há outras teorias, múltiplas, algumas inclusive que falam ter sido uma arma estadunidense na guerra híbrida entre essas potências, e que foi colocada na China por soldados que participaram de um congresso em Wuhan. Mas fiquemos com a hipótese do mercado de animais de Wuhan, a mais provável pois já se sabe que esse vírus não foi criado em laboratório.

Pois bem, esse mercado – e outros, centenas de outros que funcionam na China – vendem animais de muitas espécies, muitos animais selvagens domesticados e criados por pequenos agricultores com a benção do governo central, pois assim sobreviveram quando a China passou por uma grande fome nos anos 1958-1961. Esses animais ficam amontoados em gaiolas, umas sobre as outras, e teria sido essa promiscuidade que teria permitido a passagem do vírus de um animal a outro, e daí ao animal humano. Ora, uma utopia seria pensarmos em uma sociedade em que os animais fossem criados com algum respeito às suas necessidades subjetivas, com certa liberdade, mesmo os que fossem depois destinados ao consumo humano.

Não podemos, porém, desconhecer a possibilidade das distopias, como a de Estados ultrapoderosos, controlando através de algoritmos nossos comportamentos, nos vigiando 24 horas por dia.

E o cenário do combate ao coronavírus ajudou na implantação de sistemas que, se já existiam, ainda eram timidamente usados pelos Estados. Drones que controlam quem está na rua, reconhecimento facial para o pagamento em supermercado, substituição do trabalho em escritórios e universidades por trabalho remoto apagando as fronteiras entre o trabalho e a vida domestica, e muitas outras.

Ainda sobre economia, a pandemia me parece trazer à tona a discussão acerca do capitalismo / políticas neoliberais / a mão do Estado. Você acha que daremos um passo em direção a alguma mudança?

Sim, penso que as políticas neoliberais de um Estado mínimo terão de ser repensadas – e onde temos governos minimamente inteligentes encontramos essa autocritica, como foi o caso do Presidente Macron, na França. A privatização do sistema de saúde – como ocorreu nos Estados Unidos – mostra o desastre que isso pode levar.  


A polarização também está evidente uma vez mais, com uma briga entre os que defendem o isolamento por um período maior e os que seguem o presidente e pedem retomada econômica breve. Como você percebe?

É uma loucura macabra imaginar que se possa reativar a economia ao preço de milhões de mortes. Haverá uma depressão mundial, e no Brasil talvez pior ainda, pois entramos fragilizados. Mas há medidas que podem ser tomadas e que já deveriam estar sendo: tributo sobre lucro e dividendos empresariais — se cobrarmos ½ % sobre o patrimônio de quem tem acima de 20 milhões, como se faz em todo o mundo, teríamos uma arrecadação anual de bilhões.

Circulou na última semana uma ideia atribuída à Margaret Mead (1901-1978) sobre o marco civilizatório. Em sociedades e culturas, dizia, em alusão a um fêmur quebrado e cicatrizado, “acompanhar processos de cura alheia e prestar serviço imotivado são gestos que definem comunidades civilizadas.” Me pareceu oportuno. O que achas que o momento representará para nossa sociedade?


Sim, é muito apropriada a citação de Mead. É preciso pensar na cura do próximo, do familiar, do vizinho, do conterrâneo e também do estrangeiro. Somos todos humanos. Como dissemos em um texto da União Antropológica Mundial (WAU), essa é uma crise que traz à tona o fato de que a sobrevivência humana depende da cooperação humana. Só podemos viver se nos respeitarmos. Mesmo que limites e fronteiras tenham que ser fechadas, elas devem ser fechadas com o consentimento comum. Para isso, o mundo precisa de paz, compreensão e boa vontade.

Humanismo, por muito tempo um tema forte de antropólogos.as, tem que se tornar um tema comum para todos.as aprenderem e para que possamos superar outras crises, que virão.

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