Na teia: uma resenha-entrevista-ensaio com Carlos Henrique Schroeder

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Por Demétrio Panarotto

Uma das atrações do festival literário PIPA deste ano foi o escritor catarinense Carlos Henrique Schroeder (foto): entrevistei-o em uma live/lançamento pelo Instagram no mês de junho de 2020, e o encontro (regado a algumas taças de vinho) rendeu mais de uma hora e meia de conversa leve, despretensiosa e cheia de referências.

O foco da conversa foi o mais recente livro de Schroeder, Aranhas, lançado em março de 2020 pela editora Record. Todavia, no entremeio da conversa, entre uma e outra leitura dos contos, o entrevistado, numa versatilidade impressionante, brindou os teleouvintes com algumas referências literárias que, conforme ia citando, ganhavam a tela (de quem nos assistia), sacadas prontamente de sua biblioteca. Schroeder é um escritor que conhece o seu território e as peças que movimenta, e traz tudo isso para o diálogo. Na conversa, ainda, como não poderia deixar de ser, tivemos confabulações sobre As fantasias Eletivas, História da Chuva, seus outros livros, e um bloco dedicado ao mundo do cinema. E, para fechar, as lidas de ordem familiar: momento em que Samuca e Henrique (filhos do Carlos), Lorenzo e Antônia (os meus) ganharam a tela para um tchauzinho aos presentes.

Aranhas é um livro que, dentre outras peculiaridades, monta-se a partir de 32 narrativas, entre curtas e longas, que tratam, aparentemente, do cotidiano, mas que remontam uma tessitura ainda mais potente quando conectadas a um projeto que demanda, além de traquejo literário, muita pesquisa. Vale salientar que o título de cada um dos contos provém do nome científico e popular de um tipo específico de aranha; ou que, de outro modo, cada aranha está silenciosamente imbricada no dia a dia da vida das pessoas em situações que muitas vezes passam despercebidas aos olhos desatentos. Aranhas é, ainda, um projeto literário em que fica nítido o esmero e a dedicação do autor na construção de uma teia de significados que se imbrica à sua própria obra e se conecta à obra de outros escritores contemporâneos e, por extensão, cria fricções com a tradição literária. Para trazer dois nomes à baila, um deles é Kafka, em que “a metamorfose” do escritor tcheco se apresenta como tensão e potência em um dos contos. De outro escritor, o mexicano Mario Bellatin, Schroeder empresta as conexões ousadas e a dedicação à curiosidade: da pesquisa, do cotidiano, da ficção…

Vejamos esses três trechos, dos contos Aranha-lobo (Lycosa erythrognatha), Golias-comedora-de-pássaros (Theraphosa blondi) e Saltadora (Evarcha culicivora), citados na sequência que monto abaixo:

“Você vê uma aranha e imediatamente pensa em veneno ou na sua aparência repulsiva. Esquece que ela é carnívora, como você. Esquece também que ela se alimenta de insetos (as menores) ou de ratos e pássaros (as maiores), mas só mata o que pode comer. Aranhas não compram animais ou insetos mortos, não negociam a morte. Não matam por prazer”.

“Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos inquietos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num aracnídeo monstruoso. Suas oito pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos”.

“E toda a história fica na garganta. Por fim, as histórias têm os mesmos ciclos dos corpos: começam pequenas, titubeantes, sem muitos caminhos, e crescem, cheias de expectativas, querendo devorar o mundo, mas vão empalidecendo e param de respirar no ponto final. Algumas. Essa nem saiu da boca”.

Adoro a ideia de que o grande segredo de em um livro de contos está na potência de suas conexões, mesmo quando lidas pacientemente de modo fragmentado. São três contos de um cotidiano distinto (o mesmo?), porém que se conectam, e as teias, nesse momento, passam a ser outras. É na aparente invisibilidade do texto que a voz de Schroeder, em jogos tênues, tece e destece.

Depois da leitura do livro e da live/lançamento, pensei em dedicar o Quinta Maldita (sarau-programa de rádio que realizo em parceria com Marcio Fontoura, da Desterro Cultural, e que fica disponível aos ouvintes, primeiro, no YouTube, mas que em breve estará no formato podcast) ao livro Aranhas. Dessa maneira, alguns leitores, amigas e amigos em comum, dispuseram-se a escolher e ler contos do livro. Essas leituras no formato de um programa/podcast, que se monta a partir das conexões da palavra sendo dita, falada, interpretada, resultaram em uma outra teia, mais uma dentre as possíveis de serem montadas a partir do livro. O episódio vai ai ar no dia 6 de agosto. Leia aqui.

Essas teias, todas elas, me levaram a mais questionamentos, novas janelas, lugares… Então levantei alguns disparadores para Carlos Henrique Schroeder, que compartilho abaixo, e que servirão também para o lançamento do programa dedicado ao livro.

ENTREVISTA

Ideia. Projeto. Livro. Quando foi o momento em que percebeu que Aranhas era o livro da vez?

Geralmente tenho uma ideia, um esboço, que adere a outras referências e experiências e toma uma forma, mais ou menos como um coronavírus (para usar algo bem próximo nos dias atuais), e cada coroa dessa forma pode levar a narrativa para algum lugar: mais centralidade ou mais e mais redes e conexões. E quando essa ideia vai para o papel, para a caderneta, e depois para o processador de texto do computador, é que vejo no que vai dar, se tem a respiração pausada do romance, o surto do conto ou a visualidade de uma obra audiovisual, ou se consigo quebrar essas fronteiras e surtar um romance, pausar um conto… No romance Esboço, da canadense Rachel Cusk, em um determinado momento, a narradora reflete sobre as formas, e diz que somente com o preenchimento do exterior, da sua história e da história de outras pessoas, ela conseguiu ter noção da sua verdadeira forma interior: “uma noção de quem ela era agora”.

Nos meus projetos (não gosto da palavra processo, que me lembra automatização) de escritura os esboços também acontecem por fora, e modelam o interior. Então só sei o que será, se será um romance de 200 páginas, um microconto de um parágrafo ou um argumento de roteiro de longametragem quando as coisas estão mais claras, o esboço exterior melhor preenchido. No caso do meu último livro, Aranhas, ele bem poderia ser uma “novelita de contos” ou “contos em uma novelita”, e a verdade é que até a metade do projeto eu tinha dúvidas se o que escorria de minhas mãos era um livro de contos ou um romance, mas caso eu optasse pela última opção, provavelmente acabaria estragando alguma espontaneidade das teias narrativas, mas teria uma concentração dramática maior. São escolhas, são jogos, optei pelos contos para ter um pouco mais de liberdade e dar mais potência a cada narrativa, individualmente. Essas dúvidas, tanto antes, quanto durante, quanto depois, são as que mais nos ensinam (escritor de verdade está sempre aprendendo).

Quais são a conexões que o leitor encontra em Aranhas e que já estão presentes em As fantasias eletivas, que é seu livro mais conhecido?

Aranhas e As fantasias eletivas são dois livros espiralados e, sobretudo, que escondem mais do que dizem, são livros de teias narrativas. Um exemplo: as aranhas não possuem ideia de sua fragilidade perante o mundo, perante os humanos. São exímias caçadoras, vivem para caçar, se alimentar e se reproduzir, e praticamente todas possuem veneno (grande parte inofensiva para nós). Aranhas são ultraconfiantes (programação genética?). Os humanos também são, e cada humano se acha especial, a última bolacha do pacote, e não temos ideia de nossas fragilidades físicas (é preciso uma gripe espanhola, um Ebola, um Nipah, um Covid-19 para devolver nossa espécie à insignificância) ou psicológica (depressão, ansiedade…). Os dois livros trabalham com as fragilidades humanas, sobretudo a solidão e a incomunicabilidade. E são dois livros em que fujo de quaisquer beletrismo, é a linguagem das pessoas, da rua, são vozes dispersas que se sobrepõem.

Em que ponto o livro (Aranhas) se faz cinema?

É uma obra carregada de visualidade, que mostra muito. Que embora não tenha descrições minuciosas de cenários, lugares, tem o movimento do cinema: nos cortes, nas justaposições, na edição. É um livro que além de lido, “é visto”. São inúmeros os pontos de contato entre o código literário e o cinematográfico. Minha alma de cinéfilo atravessa cada linha.

Um projeto como este demanda tempo, pesquisa, muito trabalho, dedicação. Como conciliar isso tudo à vida ordinária, ou, de outro modo, o que um escritor em um país como o Brasil precisa fazer, para além da venda de seus livros, na árdua luta se manter dignamente?

Eu faço dezenas de coisas, e nenhuma delas dá muito dinheiro: resenhas, ensaios, curadorias, avaliação de originais, roteiros de cinema, edição de livros, oficinas, pareceres… Mas juntando tudo isso eu consigo me manter e ajudar minha companheira (que tem um bom emprego na indústria do vestuário) nas contas da casa. É bom porque não é nada monótono, estou sempre com novos projetos, mas o que cansa é a falta de uma estabilidade. Mas eu escolhi esse caminho, e não posso reclamar. Não conheço nenhum escritor brasileiro contemporâneo de ficção adulta (excluindo os autores de best-sellers) que viva de direitos autorais. Todos vivem dos derivados, dos periféricos que advém da escrita. É o jogo. Para o escritor brasileiro: vale quanto aguenta apanhar sem desistir. É a regra.

Nas várias conversas que tivemos, a ficção parece andar de mãos dadas com você. Há algum momento em que o olhar ficcional não faça parte do teu dia a dia?

Acho que não, estou sempre fabulando, confabulando, anotando, olho para alguém e já estou delineando um personagem. Lembrando de um livro, de um filme, e aquela frase da Susan Sontag parece ser feita para mim: reciclar a própria biografia com livros. É que no final das contas (e isso é muito triste, não é divino, não é um mérito, é uma maldição) as coisas que me deixam mais feliz são relacionadas com a ficção: escrever, ler, ver um filme. O resto eu preciso me esforçar para ser ou parecer feliz. Minhas maiores alegrias estão relacionadas com a ficção, e não com a vida, sou um cara doente.

“Se o Brasil fosse um país de leitores” parece soar prepotente, mas considere a expressão no ponto em que ela é carregada de elementos ficcionais e dê potência a eles: mas se te dessem carta branca nesse momento, você gostaria de escrever sobre o quê?

Na verdade, eu tenho carta branca, sempre escrevi sobre o que quis, da maneira que quis. Mesmo na editora, na Record, nunca me pediram para tirar uma linha sequer, por soar isso ou aquilo. Nós fazemos concessões o dia inteiro, para nossos amigos, nossa família, nossa companheira, e acho que a ficção não é um território negociável. Se eu precisar a todo tempo pensar se vou machucar alguém ou não enquanto escrevo, ou para agradar algum campo literário específico, eu abandono a escrita. O que me move à escritura é justamente isso: a ilusão de uma liberdade. É, provavelmente, o único lugar da minha vida em que posso me sentir livre.

Há no livro algum momento (ou mais que um) em que o Carlos, quando relê os contos, se reconhece nos personagens?

Acho que emprestei ao personagem Sandro, do conto Aranha-lobo, algumas caraterísticas: já fui surfista, fiz artes marciais e muitas besteiras em relacionamentos. Também já fui muito ingênuo (não que hoje eu não seja) no trato com as pessoas. Nos demais procurei o distanciamento, é um livro de muitas vozes, são 32 vozes e formas de contar diferentes. Acredito que cada conto pede uma forma de narrar, uma dicção, uma voz… E que a forma deve mudar de acordo com o conteúdo.

No posfácio do livro O boxeador polaco, do guatemalteco Eduardo Halfon, o Antônio Xerxenesky condensa uma ideia que defendo há muito tempo, a de narrativas breves que “não fingem que são os primeiros contos escritos na História da humanidade. Pelo contrário, estão cientes de que estão inseridos em uma tradição, de que uma história dialoga com outra história”. Aranhas é um livro ciente de si, de sua existência.

Aranhas (2020), de Carlos Henrique Schroeder. Editora Record. 192 págs. R$ 44,90.

Conheça os autores

Carlos Henrique Schroeder (Trombudo Central, 1978) é autor de Ensaio do vazio (7Letras, 2007), adaptado para os quadrinhos; da coletânea de contos As certezas e as palavras (Editora da Casa, 2010), vencedora do Prêmio Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional, e do romance As fantasias eletivas (Record, 2014), em adaptação cinematográfica e lançado na Espanha pela Maresia Libros. Este livro também foi leitura indicada nos vestibulares UFSC, Udesc e Acafe nos anos de 2016 e 2017. Publicou também História da chuva (Record, 2015), obra contemplada pela bolsa Petrobras Cultural. Em 2020 lançou Aranha, pela Record, com narrativas breves inspiradas em aranhas. Tem contos traduzidos para o inglês, alemão, espanhol e islandês. Foto: André Guse Barbi

Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben).  Publicou: Borboletas e Abacates (Argos, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008, poemas); 15’39 (Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio); Crônica para um defunto (dengo-dengo cartoneiro, 2013, poemas); O assassinato seguido de La bodeguita (Butecanis Editora Cabocla, 2014, contos); Poema da Maria 3D (Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto); Ares-Condicionados (Editora Nave, 2015, contos); A de Antônia (Miríade, 2016, infantil); No Puteiro (Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas); Café com Boceta (Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas); Blasfêmia (Butecanis Editora Cabocla, 2018, poemas); 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto (Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas), Tratamento da Imagem (Patifaria, 2018, conto); Arquipélago (Patifaria, 2018, infantil), Lotação (Medusa, 2018, poemas); Vozes e Versos (Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo). Responsável, ainda, pela Organização de: Livres Somos Versos, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2018, poemas) e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2019, poemas); Cerzindo e Cozendo (Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas) mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis.

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